Os 24 mil do procurador
Vinte e quatro mil reais, sem contar os benefícios. É esse o montante que o procurador tragicamente chamou de "miserê" e é esse o montante que servirá de base para nosso exercício de hoje — junte-se a mim, colega brasileiro atordoado, e vamos tentar fazer com que esse circo dos horrores nos seja útil, para além de dar gastura, desespero, asco, riso desesperado e sensação de impotência.
Você não precisará de planilha, nem de matemática financeira, nem de nada muito elaborado, são só algumas adições. Pegue uma folha de papel, pode ser um rascunho, um guardanapo, um cantinho de agenda. Agora tente deixar de lado a vida financeira que você tem hoje, só por uns minutinhos. Esqueça quanto você ganha, esqueça quanto gasta no mercado, esqueça quanto paga na conta de luz, internet e celular. Seu salário mudou. Você agora recebe 24 mil reais líquidos por mês. Todos os meses. É esse valor gordo, longo, de cinco dígitos, esse valor 955% maior do que o valor recebido pelo trabalhador brasileiro, em média. Escreva esse valor no topo do seu papel, e agora me conte: o que você faria com esse dinheiro? Como seria sua vida financeira? Quanto você gastaria com cada coisa?
Não vale falar "ah, Amuri, nossa, eu ia viver bem demais!". Nesta pequena coluna quinzenal nós trabalhamos com números, números, números. Faça sua listinha por aí. "Tantos reais com isso, tantos reais com aquilo, tantos reais com x, tantos reais com y" até que você tenha dado um destino para cada um 24 salários mínimos que você receberá mensalmente.
"Nossa, eu ia contratar um plano de saúde muito bom!" — sem problemas, o exercício é seu, você pode fazer o que você quiser, mas tem que colocar o número: quanto custa um plano de saúde muito bom?
"Jesus, imagina fazer mercado com esse tanto de dinheiro?" — compre quantos quilos de carne boa você quiser, compre vegetais sem veneno, encha o carrinho de sorvete Häagen-Dazs, seja muito feliz, mas coloque o número: quanto custa essa compra do mês?
"Eu não ia pegar um ônibus na vida mais. Só andaria de táxi chique e de Uber Black" — não me parece muito bom para o meio ambiente, mas enfim, ainda somos relativamente livres, então segue o jogo: quanto custa, para você, deixar de utilizar o transporte público e utilizar transporte particular?
Propus esse exercício para os amigos no meu perfil do Instagram, e vou compartilhar algumas respostas que recebi por lá e podem servir de gancho para alguns comentários interessantes:
Essas são algumas das dezenas de respostas interessantes que eu recebi. Todos partiram dos mesmos 24 mil reais mas, por conta do contexto socioeconômico de cada um, e das diferentes experiências aos quais foram expostos, chegaram em resultados bem diferentes.
Em um dos planejamentos, por exemplo, tem pouco mais de 10% da renda (3 mil reais) destinado a formação de reserva (investimentos), enquanto no outro esse valor ultrapassa os 40%. Já o autor do último planejamento separou um valor para investimentos mais tradicionais e outro valor, também relevante, para investir em projetos pessoais, dele e da companheira.
Um dos autores dos planejamentos dedicou 2 mil reais ao aluguel de um espaço confortável, outro achou melhor separar mais de 4 mil para moradia, outro preferiu enxergar moradia e contas da casa como um item só, e dedicou 6 mil para isso, e aparentemente todos ficaram felizes com o arranjo encontrado, afinal, nossos parâmetros de satisfação são particulares e relativos.
Ponderar se "é muito" e se "é pouco", se "está caro" ou se "está barato", é exaustivo. Sendo assim, para evitar esse estado de fadiga e reduzir o desgaste cognitivo, criamos atalhos mentais, jeitinhos preguiçosos de tomar decisões e estimar valores. Eu questionei, de maneira aleatória e bastante rudimentar, alguns valores que as pessoas me enviaram.
"Você falou que gastaria 1.000 reais de mercado… vai dar para comprar tudo o que você quer mesmo?"
Foi só um questionamento bobo, só para forçar a pessoa a ponderar, de fato, se aquele era um valor coerente. Recebi respostas parecidas com essa:
"Hum… é… acho que não… não sei nem porque eu coloquei 1.000"
Essa pessoa falou 1.000 porque é o valor que estava na cabeça, "guardado em uma gaveta", é a referência automática que ela tinha para "mercado bom". Pensar mais profundamente sobre essa questão daria muito trabalho, então ela pegou um atalho. Foi a maneira que ela encontrou para fazer o exercício sem se cansar, é completamente natural. A psicologia econômica chama esses valores guardados nas gavetas de âncoras (e o fenômeno, como um todo, de ancoragem).
Recorremos a essas referências com bastante frequência, sempre que precisamos ponderamos sobre comprar ou não comprar: se o valor da etiqueta de preço for menor do que o valor que tínhamos como referência, achamos barato, se o valor da etiqueta for maior, achamos caro.
Note o "é muito dinheiro, cara!" que apareceu em um dos exemplos. De fato, é muito dinheiro, mas é provável que o autor do comentário não tenha feito a conta que constata que é muito dinheiro. Ele simplesmente falou que é muito dinheiro porque os 24 mil ultrapassam, com folga, o valor que ele tinha como referência (na gavetinha) para "salário muito bom".
Perceba que, nessa brincadeira, nesse planejamento de mentira, é bem fácil fazer com que nossos gastos reflitam o que supomos ser nossas prioridades. Com a folha em branco e a abundância de recursos, surgem as doações para causas que valorizamos e o apoio a familiares e amigos, por exemplo. Ganho meu dia quando chega uma mensagem como essa:
"Caraca, Amuri, no exercício eu separei 2.000 para apoiar projetos de amigos e me toquei que atualmente eu ganho 5;000 e não ajudo ninguém com nada, vou incluir aqui, mesmo que seja um valor pequeno, obrigado pelo chacoalhão"
Na correria do dia a dia, equilibrando pratos (e, por vezes, simplesmente tentando fazer com que as contas fechem), esse alinhamento se perde. Surgem discrepâncias entre o que sonhamos, entre o que acreditamos que é importante para nós e o que de fato acontece no nosso extrato bancário. Nossas chances de redesenhar esse cenário de maneira mais favorável aumentam quando colocamos os números no papel e conversamos sobre eles.
Essa foi minha tentativa de transformar essa história do procurador em algo menos triste. Me sinto pegando um quadro feio, muito feio, e girando infinitas vezes, de um lado para o outro, colocando de cabeça para baixo, jogando pra cima, virando do avesso, numa esperança boba de que algo minimamente benéfico surja a partir dessa tragédia.
Talvez o que tenhamos aprendido com tudo isso, na verdade, é que é perfeitamente possível ter um salário de 24 mil reais e ser absolutamente miserável.
Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.
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