Você não precisa de uma planilha colorida para construir uma vida financeira saudável

Algum dia, alguém, em um livro famoso ou em um grande programa de TV, disse que a materialização de todo planejamento financeiro é uma planilha. Alguém atribuiu a este conjunto de bytes a responsabilidade por ser o representante da nossa vida financeira na Terra. Disseram que ela é o artefato que, nas épocas boas, está atualizado, brilhante, piscando e, nas épocas ruins, está largado em algum canto do computador, do celular ou da nuvem. Ela é o bastião dos bons costumes, dos certinhos, dos que dão orgulho para a vó, dos que venceram a preguiça. E a gente acreditou nessa bobagem.

Cruzo semanalmente com clientes e alunos que, logo no primeiro papo, soltam um: "ai meu deus, Amuri, eu sou horrível de planejamento financeiro, não sei fazer planilha, não sei fazer fórmula". Papo vai, papo vem, eu acabo falando: "bom, então ao invés de sair fazendo planilha, vamos conversar e a gente rabisca um pouco nesse papel mesmo". Descubro que no papel a pessoa é ótima. Super desenvolta. Estrutura bem as ideias, é capaz de manter um fluxo de raciocínio linear, consegue fatiar um grande problema em etapas menores e acionáveis. Por fim, concluo que a pessoa não é "ruim de planejamento", ela só é "ruim de planilha", o que, em se tratando de vida financeira, é algo bem irrelevante.

Associar o planejamento a uma planilha é tão válido quanto associar o lançamento olímpico de martelo ao condicionamento físico. Praticar o lançamento olímpico de martelo é só uma das maneiras de me condicionar fisicamente, uma das muitas rotas possíveis. Posso escolher caminhar, nadar, correr, andar de bicicleta, jogar handebol, jogar peteca, minhas possibilidades são inúmeras. Da mesma forma, se quero construir uma vida financeira mais saudável, conto com muitas opções. A planilha é só uma delas e, não raramente, uma opção ruim. Dizer que uma pessoa é ruim de planejamento porque não sabe fazer planilha é tão absurdo quanto dizer que uma pessoa não tem condicionamento físico porque não sabe arremessar martelo.

Existe planejamento bem feito (e extremamente benéfico) feito em papel e caneta, na cabeça, em planilha, em aplicativo de celular, em site, em lousa, em post-it. A forma é um detalhe. É importante, porém, que o planejamento seja claro, simples e, principalmente, que se adeque ao seu jeito de pensar e organizar as informações. É o planejamento que deve ser flexível e se adequar a você, e não o contrário. É por isso que aquela planilha que seu primo ou amigo da faculdade enviou – todo mundo tem um primo ou amigo que manda planilha – provavelmente será abandonada em algum canto.

Prefiro, sempre, oferecer uma base, bem neutra, ridiculamente simples e propor que o aluno ou cliente construa o próprio raciocínio em cima dela. A cada 15 dias encontro os alunos do Dinheiro Sem Medo, programa de acompanhamento que ofereço há cerca de 2 anos, e não é raro escutar frases do tipo "Amuri, fiz mais ou menos igual você fez na aula, você pode revisar?"  e, quando vou olhar, vejo que o que está desenhado ali não tem praticamente nenhuma relação com a base que eu ofereci. Já foi tão mexido, tão adaptado, que nem parece que veio de onde veio. Isso é maravilhoso. Agora aquele aluno tem um método desenvolvido por ele, que respeita suas limitações e se apoia nos pontos em que ele trafega com mais habilidade.

Percebo que os planejamentos mais adequados e duradouros, geralmente, partem de boas perguntas. Não partem de lista, de análise de extrato bancário, de categorização (aliás, qual o sentido de perdermos tempo decidindo se despesa com restaurante entra na categoria lazer ou alimentação, minha nossa senhora). A partir das boas perguntas, entramos em um certo fluxo que evidencia as rotas cognitivas que nos parecem mais naturais. Um exemplo interessante de pergunta:

Hoje é dia 18 e, amanhã, dia 19, todos caixas eletrônicos deixarão de funcionar. Todas os cartões de crédito e débito vão se desintegrar. As maquininhas vão pifar. Você terá, porém, a oportunidade de efetuar um saque no caixa eletrônico mais próximo da sua casa. Um único saque. Você deverá sacar um valor que dê conta de quitar todas as suas despesas, do dia 19 deste mês até o dia 19 do próximo. Todas as despesas: as fixas, as variáveis, as sazonais; a fatura do cartão, a mesada do pequeno, o boleto da escola de inglês, todas. Quanto você precisa sacar?

Para responder a pergunta acima (e muitas outras), uns criarão uma listinha em um papel, outros chutarão o valor do salário, outros elencarão despesas em uma planilha, outros abrirão a calculadora do celular. Alguns, talvez, fiquem paralisados, sem saber por onde começar. São todas reações válidas que podem ser trabalhadas de modo que culminem em uma ferramenta de apoio a tomada de decisão.

Não há nenhum valor em gerar gráficos coloridos e registrar quanto gastamos com café durante o ano de 2013, se essas informações não estiverem claras e bem trabalhadas.

Repetindo, para não esquecermos: o planejamento financeiro é uma ferramenta de apoio à tomada de decisão. A ideia é que ele nos ajude, e não que nos machuque. Talvez você tenha que respirar mais fundo, talvez tenha que tomar um tiquinho de coragem, mas definitivamente não é para ser um martírio, não é para doer, não é para ser algo que você posterga até não dar mais.

Mais do que um amontoado de dados, queremos que ele se torne algo desejável de ser visto e manipulado, que ele nos aponte caminhos. Em última instância, o processo de planejamento é um ponto de encontro com nossos sonhos, medos, crenças e objetivos. Que seja leve, então.


Este texto foi originalmente publicado em minha coluna quinzenal no Valor Investe. O link para acesso ao texto original está aqui→

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eduardo antunespreferidos