Você compraria remédio ou comida?

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Hoje é dia 22 de agosto de 2017 e em São Paulo faz 11 graus, ontem à noite o termômetro bateu 9. Talvez você tenha tomado um banho quente hoje de manhã, ou talvez tenha tomado ontem à noite, antes de dormir. Eu tomei banho ontem. Deixei o chuveiro ligado uns dois ou três minutinhos antes de entrar, para dar uma esquentada no banheiro. Tomei um banho com a água bem quente e fui direto para a cama. Meu quarto é silencioso, fiquei batendo papo com a Gabriela até o sono vir, e em seguida dormi pesado por umas sete horas. Acordei, tomei um chá bem bom, presente de um amigo, comi pão, queijo e uva. 

Este texto será lido por um grupo composto por algumas milhares de pessoas, e eu me arriscaria dizer que praticamente todos os que fazem parte desse grupo tiveram, ou poderiam ter tido, uma rotina parecida com a minha (banho quente, comida e cama).  

Dê uma pausa no que você estiver fazendo agora, se possível feche as demais abas do seu navegador, e tente trazer à tona essa sensação de aconchego. Do corpo aquecido, do estômago preenchido, da roupa em contato com a pele. Com ela bem viva, dê play no vídeo abaixo, prestando atenção especial nos 0:51, na fala do Carlos sobre a carteirinha, e nos 0:59, na cena da menininha embaixo da torneira.

Este vídeo faz parte da excelente reportagem "Você compra remédio ou comida", feita pela BBC. 

Agora pense em todas as dicas que você já leu sobre educação financeira. Os livros do Gustavo Cerbasi, o Mauro Halfeld na Rádio CBN, os meus textos, os pitacos que um amigo bom de planilha te deu. Para a família do vídeo, que conta pedaços de salsicha, todos esses conselhos serão irrisórios, desprezíveis, quase nada. E não é porque o planejamento financeiro não tenha capacidade de otimizar o uso dos recursos, mesmo que poucos. A questão é que, dadas determinadas condições, nossa capacidade de discernimento e cognição se esvai. 

Em uma situação extrema de pobreza, entramos no que a psicologia chama de túnel. Perdemos completamente a capacidade de ponderar sobre cenários minimamente complexos e permanecemos focados no curtíssimo prazo, no objetivo primário, deixando de lado todas as possibilidades (inclusive as que nos beneficiariam diretamente). O objetivo primário, no caso do vídeo, é sobreviver. Tomando água gelada na cabeça, sem dormir, tendo que se preocupar com qual conta vai atrasar esse mês, o Carlos e a Odilene não conseguem se preocupar em atualizar o cadastro do Bolsa Família, para que voltem a usufruir do benefício. É provável que essa pequena ação resultasse num aumento de 20% na renda familiar, mas não há disponibilidade mental para se preocupar com nada além da próxima refeição. 

A escassez molda a maneira como tomamos decisões e, por consequência, a nossa vida. Decisões bem infelizes são tomadas sempre que imergimos em um contexto de falta. O exercício acima retrata um caso extremo, totalmente ligada ao aspecto financeiro, mas esse mesmo fenômeno ocorre na gestão dos demais recursos finitos, como a atenção e o tempo – uma empresária, que diz trabalhar tanto para dar uma vida boa para si e para a família, mas tem tantos problemas relacionados ao trabalho, tem tão pouco espaço de reflexão disponível, que não consegue perceber que provavelmente viveria melhor com menos dinheiro e menos atribuições. 

A compreensão do conceito de escassez é fundamental para que consigamos entender o outro, para que não surjam mais comentários absurdos do tipo "que burro! era só ele atualizar a carteirinha do Bolsa Família".

O vídeo acima embrulhou meu estômago e eu peço desculpas caso tenha embrulhado o seu também.

Para entender mais sobre a psicologia da escassez, recomendo este livro.

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eduardo antunespreferidos