Quatro pequenas histórias para entender como a mente controla o bolso

Autor da imagem: @magoz

Autor da imagem: @magoz

Neste link contei a história do Chico. Rapaz simpático da capital paulista, experimentando a solteirice recente, empregado em uma grande multinacional e desejoso de uma vida financeira mais ajeitada. Nos debruçamos sobre os números, escarafunchamos os gastos fixos e os variáveis e fizemos algumas projeções, para que ele conseguisse tirar do papel alguns sonhos que estavam engavetados, dentre eles a viagem para Argentina.

Hoje seguirei brincando de Deus, usufruindo dos meus pequenos poderes e manipulando a realidade e o futuro do meu personagem querido: a viagem aconteceu, Chico foi bem feliz por lá, se esbaldou em alfajores, viveu um pequeno romance com Carmencita, bebeu vinho como se não houvesse amanhã e está ansioso pela próxima aventura.

Encontrei-o recentemente, cheio de história para contar. É desse encontro que partiremos hoje, utilizando algumas falas do próprio Chico e explorando cenários simples, focando nas percepções e estratégias adotadas por ele durante a estada na terra dos hermanos. Vamos juntos?

 

"Foi fácil administrar o dinheiro durante a viagem"

"Não sei muito bem o motivo, mas foi bem fácil administrar o dinheiro durante os dias em que estive por lá. Tudo já estava meio que definido, foi fácil de acompanhar, não passei vontade e nem precisei fazer planilha. Por que isso acontece? Por que eu sofro tanto com dinheiro por aqui, mas quando viajei parecia que estava tudo bem?"

Esse cenário é bem comum. Por vezes o relato é ainda mais drástico, do tipo "a única vez em que sinto que fui capaz de administrar meu dinheiro foi durante meu  intercâmbio".

Na maioria das vezes, essa sensação surge porque nos parece necessária a associação entre planejamento e viagem. Não é nosso senso de capacidade e competência que está em jogo, e sim uma necessidade latente. A ideia de colocar a mochila nas costas sem dar uma olhada nos números nos parece extremamente perigosa.

Para além disso, uma viagem tem algumas características que tornam o processo de planejamento intuitivo. Ela, na maioria dos cenários, tem duração bem definida, o que faz com que a alocação de recursos seja fácil. Se tenho R$ 1000 para os gastos de dia a dia, e ficarei viajando por 20 dias, fica bastante óbvio que, na verdade, tenho R$ 50 por dia.

O medo de ficar sem grana na estrada faz com que olhemos os números com mais frequência e, com isso, pequenos ajustes surgem sem esforço. Por exemplo, se sei que tenho R$ 50 por dia e que hoje gastei R$ 60, também sei que amanhã precisarei dar uma segurada. Se hoje andei de carona o dia todo e me alimentei nas barraquinhas de chorizo, sei que terei uma verba maior para amanhã e assim sucessivamente.

A viagem também nos força a considerar os prováveis imprevistos, afinal, estamos em um local que não conhecemos tão bem assim, então nos parece óbvio contar com uma pequena reserva para todos os fatores e aspectos que não temos capacidade de prever.

"Seria legal se conseguíssemos administrar o dinheiro na vida da mesma maneira que administramos o dinheiro quando estamos viajando, né?"

Sim, sem dúvida.

(essa sensação de estar conversando com um personagem que eu mesmo inventei é bem maluca)

 

"Gastei bastante jantando com Carmencita, e quase nada comendo sozinho"

"Quando estava com Carmencita, era normal gastarmos 300 ou 350 pesos cada um, no jantar. Quando estava sozinho, comia bem por 150. Percebi isso nos primeiros dias, mas não dei conta de interferir. Foi assim até o último dia. A mesma coisa nos passeios: sozinho gastava menos da metade. E olha que a Carmencita não me pedia nada, não me forçava a nada. Não sei o que aconteceu..."

Quanto você gastaria por um brinde com Carmencita?

Eu sei, amigo. Gastar dinheiro é um ato social e político, é uma maneira de nos posicionarmos na sociedade. Não importa o quanto desejamos nos adequar ao sistema vigente, nem o quanto nos julgamos vaidosos, é simplesmente ingênuo pensar que conseguimos nos mover com tamanha racionalidade. Não pagamos simplesmente pelo bife ou pelo risotto, pagamos pelo contexto, por todas as mensagens que aquele ambiente transmite.

É provável que o Chico não tenha elaborado algo do tipo "quando estiver com Carmencita, vou escolher restaurante sem olhar o preço, para que ela me enxergue como alguém despreocupado, que tem condições e que sabe viver bem", mas certamente suas decisões foram drasticamente influenciadas pela companhia.

Talvez o Chico tenha dado conta da diferença de preço entre os restaurantes, e talvez tenha lhe ocorrido escolher um mais barato no próximo encontro, mas esse raciocínio tem pouquíssimo valor e foi deixado de lado no momento em que se imaginou brindando com a pequena, apoiando os cotovelos em uma mesa de madeira, clássica, forrada por uma toalha maravilhosa.

Somos seres emocionais, nossa racionalidade é extremamente limitada, então é melhor aceitarmos isso de uma vez.

"Quer dizer que sempre que eu estiver com ela tomarei decisões levando em conta o que ela está pensando?"

É mais cruel do que isso, a pergunta correta seria:

"Quer dizer que sempre que eu estiver com ela tomarei decisões levando em conta o que eu penso que ela está pensando?"

Sim. E é por isso que é tão fundamental cultivarmos relações nas quais o dinheiro é um assunto permitido e incentivado. Enquanto estamos falando de uma viagem de férias e de meia dúzia de jantares a situação não é tão grave (seja feliz com a Carmencita, Chico), mas a situação fica bem complexa quando nos enxergamos em um relacionamento de longo prazo, morando juntos, pensando em filhos... Precisamos do outro no nosso barco, nos ajudando a tomar decisões melhores.
 

"Não sei mais o que é caro e o que é barato"

"Viajei sabendo que compraria uma camisa oficial da seleção argentina. Assim que cheguei em Buenos Aires fui a um shopping, fiz a conversão e a camisa estava custando o equivalente a R$ 270. No Brasil, a camisa oficial sai por R$ 220. Imaginei que lá seria mais barato, mas quebrei a cara…  Vi em vários lugares e em todos o preço convertido em reais girava em torno dos 270.  Muito caro.

Pouco tempo depois, fiz uma viagem curta para uma cidade vizinha e encontrei a camisa mais barata por lá! Saiu por R$ 240. Comprei feliz, achando que estava fazendo um bom negócio, mas me esqueci completamente do preço da mesma camiseta no Brasil. Só fui me atentar pra isso depois"

Quanto você pagaria pela 10 do Messi?

Nossas percepções de preço e valor são muito subjetivas. Em uma tentativa de poupar esforço, nossa mente trabalha com referenciais. A estratégia, porém, não é tão bem sucedida, somos facilmente manipulados. O processo foi detalhadamente decupado e estudado por uma série de profissionais (psicólogos, em sua maioria), que deram a esse fenômeno o nome de ancoragem.

O funcionamento é simples. Nos habituamos com um determinado valor, e utilizamos como base para definir o que é caro e o que é barato. O problema é que conseguimos mover essa âncora de lugar. A camiseta de R$ 240 é muito cara se comparada com o preço brasileiro (quase 10% a mais), mas é bem barata se comparada ao preço na capital argentina (mais de 10% a menos!).

Essa estratégia é largamente utilizada por empresas que vendem serviços baseados em planos. Empresas de TV a cabo, por exemplo, Você dificilmente verá uma empresa que oferece apenas dois planos (um mais elaborado e um mais simples). Normalmente são oferecidos pelo menos três, e um deles é bem mais custoso que os outros dois. "Que loucura, ninguém deve comprar isso ai!", podemos pensar. Talvez ninguém compre, mas certamente somos levados a pensar que o plano intermediário é realmente acessível. É uma maneira bem ardilosa de aumentar a taxa de contratação dos planos mais caros e reduzir a adesão aos planos mais baratos.

Para quem acha essa história toda interessante, recomendo um pesquisa rápida em cima de duas áreas de estudo, as duas são bem incríveis: a psicologia econômica e a arquitetura de escolha.

E vale uma olhadinha no trabalho desse cara também.

 

"Voltei para o Brasil e já comecei a poupança para visitar Carmencita no fim do ano"

"Lembro que foi difícil começar a poupança para essa primeira viagem. Voltei para o Brasil e parece que foi bem fácil me planejar e começar a juntar dinheiro para minha próxima. Já estou no segundo mês e está tudo fluindo… Foi por conta da consultoria? É por que eu já aprendi a me organizar?"

Quanto você economizaria por mês para rever a Carmencita?

Não. Foi por conta do charme da Carmencita, Chico.

Aliás, não exatamente pelo charme, embora isso tenha que ser levado em consideração. O que entra em jogo nessa situação é o compromisso com alguém, que não você mesmo. Saber fazer um planejamento é ótimo, ajuda bastante, ter vivido um romance argentino também, mas o que realmente faz a diferença é ter, de alguma forma, se comprometido com alguma causa ou situação que extrapole a sua própria boa vontade.

No geral, sonhamos e nos planejamos sozinhos. Nosso compromisso é com a gente mesmo, e só. Não é um jeito muito interessante de se operar, fica fácil deixarmos para lá.

Quando estabelecemos um compromisso com alguém (ou até mesmo um compromisso público, com uma grande base), as chances de nos atermos aos planos e nos mobilizarmos para que eles sejam implementados cresce de maneira muito significativa (mais sobre isso aqui).

Não é cobrança, do tipo "a Carmencita fica mandando o Chico guardar dinheiro, por isso ele consegue". Muitas vezes não rola nenhuma mensagem explícita. Não é necessário que a Carmencita diga algo. Basta que o Chico saiba que ela tem conhecimento do plano. Isso basta para que as chances de sucesso dele aumentem.

Às vezes brinco que a maioria das pessoas que buscam uma consultoria financeira não precisam, exatamente de uma consultoria financeira, precisam de um amigo disposto a escutar e ajudar. Não precisam de nada tecnicamente avançado, precisam de ouvido, ombro e "bom senso de vó" (falei mais sobre isso aqui). A consultoria financeira, nesse caso, se beneficia desse fenômeno do compromisso. É como se o cliente precisasse, de alguma forma, prestar contas ao consultor. Costuma funcionar bem.

"Mas eu sempre vou precisar ficar contando tudo para todo mundo?"

Não… mas contar com os olhos e os ouvidos dos outros definitivamente fará com que a gente caminhe melhor. E não estou falando só sobre dinheiro.

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eduardo antunes