Tudo que é meu é melhor

Ah, meu deus, eu não vou conseguir juntar dinheiro nunca. Pingou, gastei, pingou, gastei. Eu jogo pra poupança e tiro da poupança, eu jogo pra poupança e tiro da poupança, não consigo nem fazer meu dinheiro fazer um mêsversário lá dentro. Maldição.

Alô, deuses do capitalismo, me ajudem, meus queridos, parem de mostrar anúncios que mexem deliciosamente com minhas vontades, como vocês sabem que essa propaganda de máquina de café ia me fazer colocar a mão no bolso? Hein? E essa sanfona? Quando foi que eu disse em voz alta que eu queria uma sanfona?

Esse mês vai... esse mês vai... um passinho em direção aos 5 mil necessários para comprar esse computador à vista, sem parcelar, sem cartão de crédito, vamo, Brasil, não desiste agora... foi! Aniversário do primeiro depósito, check!

É nessa hora que aparece o anúncio maldito. O que vai ser dessa vez? Alguma tranqueira do Mercado Livre, talvez? Não, não, não. Hoje não, amigos, hoje não, passei reto, segundo aporte feito com sucesso, o computador novo vai ser tão bonito, dá o play nesses vídeos de unboxing, turma, vamos namorar esse tela brilhante aí, esse teclado macio, esse processador da NASA.

Quinto aporte, sucesso. Sexto aporte, sucesso. Faltam mais quatro. O que são quatro aportes para quem já fez seis? Três mil reais já estão lá, reluzentes, um três seguido de três zeros.

Sétimo. Oitavo. Nono. Alô, Carla, passa no mercado, pega um vinho pra gente, quem foi que disse que eu não era capaz de guardar dinheiro pra comprar as coisas? Eu venci. Ven-ci.

Deus pai. Mês que vem é o mês. Resgato os 4 mil e 500 que já guardei, junto com os 500 eu vou ter pra aportar, chego nos 5 mil e vou pagar no boleto, sambando na cara da sociedade, aqui não tem parcelinha não, meu bem, aqui é na lata. Salário na conta, aporte separado, agora é só resgatar do investimento e gerar o boleto.

Sento no computador, abro o site do banco, faço o resgate, vejo o saldo disponível todinho na conta, agora é só abrir a aba de pagamentos e digitar aquela sequência confusa do código de barras do boleto.

Foram dez meses surpreendentemente disciplinados pra chegar aqui. Neste momento de glória. De superação. O prêmio vai ser a satisfação de comprar esse computador, à vista. Alô, leitores do Valor Investe, eu já falei pra vocês que vou pagar à vista? Aqui é numa tacada só.

Nossa, mas 5 mil reais é um dinheirão, né. Porra. É muito dinheiro. Cinco salários mínimos no Brasil. E o tanto de coisa que dá pra fazer com 5 mil reais? Olha esse numero na tela. Cinco, zero, zero, zero. Depois que eu pagar esse boleto esse dinheiro todo vai deixar de existir. Para sempre. Para sempre. Um pouco triste, não? "Do que você tá falando, Pedro, faz anos que te vejo querendo esse computador".

Você tem razão, Carla, eu trabalhei pra isso! Isso aqui é minha apoteose, minha consagração, vou até contar pra minha mãe depois. Calcula esse frete aí. Quanto deu? Frete grátis? Você jura? Mas gente...

"Já comprou, amor?". Você não me apresse, Carla, eu tô aqui, vou digitar o código desse boleto já, em 3 dias o computador chega em casa, frete gratis. Só falta pagar, o dinheiro eu já tenho, o mais difícil eu já fiz.

Mas Carla... cê sabe que eu me acostumei com a ideia de ter esse dinheiro aí? Esses cinco mil reais não são cinco mil reais quaisquer, eles são os meus cinco mil reais. Fui eu que juntei com meus dez aportes de quinhentos paus. Eu vi esse bichinho crescer. Quando eu cheguei aqui era tudo mato, quando eu comecei ele era um cinco com dois zerinhos. Agora tá aí, dentes fortes, bochechas rosadas, coisa linda de ver. A gente se apega, tenha paciência, Carla!

Carla, deixa eu te perguntar aqui, você acha que eu realmente preciso de outro computador? Não, me diz de verdade o que você acha, porque talvez eu não precise de outro computador, né. Você não acha que o computador que eu tenho aguenta mais um pouco?

Aguenta, né?
Aguenta sim.

_____________________

Amigos, todos nós temos um pouco de Pedro. Essa história é, provavelmente, a maneira menos ortodoxa e acadêmica de descrever minimamente o que as ciências comportamentais chamam de efeito posse: tendemos a valorizar mais os itens que são nossos, que estão com a gente, dos quais somos donos.

Se, lá atrás, no início dessa pequena epopeia, perguntássemos ao Pedro "você acha que vai ter um pouco de dó de gastar esses 5 mil no computador, assim, de uma vez só?", ele provavelmente responderia que não, e elencaria uma série de argumentos extremamente favoráveis à compra do computador. O grande ponto aqui é que o Pedro estaria conjecturando sobre cinco mil reais quaisquer – lembrem-se: somos péssimos em prever nosso próprio comportamento. Passados os 10 meses de compromisso e disciplina, aporte após aporte, a situação é outra, os cinco mil agora têm nome e sobrenome.

Já que, na maior parte dos cenários, não contornamos nossos impulsos emocionais – pelo contrário, mergulhamos de cabeça como se não houvesse amanhã –, que coisa boa e curiosa identificar alguns desfechos potencialmente positivos provocados pelo nosso processo de tomada de decisão levemente capenga.

Nos resta desejar que o Pedro seja feliz com o vinho, com a Carla e com os cinco mil reais. Um cinco seguido de três zeros. Que belo número.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

Pessoas queridas, as vagas para o Dinheiro Sem Medo e o Finanças Para Autônomos, meus programas de acompanhamento, estão abertas! Clique aqui → para saber mais.

Heloísa Sanchez