O pobre não é pobre porque parcela o iPhone em 12 vezes

"Essa empresa é da nossa família há 30 anos, Amuri. Gostaríamos de oferecer um treinamento de educação financeira para nossos colaboradores, são 6000 funcionários. Eu acho um absurdo, quase 40% deles estão com o nome no Serasa/SPC, mas eu vou andando ali pelos corredores e canso de ver iPhone novo na mão deles, tudo parcelado. Quando eles vão entender que é por isso que não saem do lugar?"

Esse é um resumo do pedido que recebi essa semana. Me coloquei à disposição e, antes de formatar um projeto, pedi que me enviassem um pequeno relatório socioeconômico, um resumo de onde moravam os funcionários e quais eram as respectivas remunerações. Fiz uma média rápida. Mais de 80% deles ganhava até 1.500 reais/mês, 60% morava a mais de 20km do local de trabalho.

O pedido me pareceu interessante e digno de comentário porque se apoia em uma falácia lógica comum. Ao soltar o "fica parcelando iPhone, né, aí dá nisso" o empresário – que por vezes está genuinamente munido de boa intenção – evidencia nossa falta de compreensão básica da realidade, algo muito mais grave do que a falta de educação financeira dos funcionários.

O pobre não é pobre porque parcela celular caro em 12 vezes. Para além de uma série vasta de motivos sociológicos e históricos, o pobre é pobre porque está inserido em um sistema podre que se alimenta de desigualdade social, inércia e consumo.

É provável que a compra parcelada do iPhone seja um movimento racionalmente ruim, já que a parcela tomará uma parte significativa dos recursos que já são escassos, mas, seja sincero por aqui: você realmente acha que todas as suas decisões de consumo são racionais?

Nos apoiamos constantemente no discurso dramático do "ai meu deus, falta educação financeira pra esse povo" porque é conveniente, é uma narrativa que atribui ao personagem a responsabilidade e o protagonismo. Ele está naquela situação porque não está gerenciando bem o dinheiro e cabe a ele, e só a ele, utilizar o ferramental que está sendo benevolentemente oferecido por aí – a educação – para buscar uma posição melhor.

De certa forma é cômodo para o dono da empresa (e para todos que assistem isso tudo acontecer) pensar que a educação financeira vai resolver a vida do cara que fica esmagado no ônibus por 2 horas pra chegar no trabalho e no fim do mês ganha 1.500 reais, porque, afinal, do bolso dele vai sair pouca coisa. Será um custo muito menor (e mais viável) do que o custo provocado por um aumento da base salarial, que, por sua vez, seria muitíssimo mais efetivo para a melhoria de vida dos que fazem aquela empresa acontecer.

Nos ancoramos na suposição de que o pobre lida especialmente mal com o dinheiro, mas essa hipótese não se sustenta. Lidamos mal com o dinheiro de maneira geral, amigos, estamos todos juntos nesse barco. A diferença é que quando uma pessoa com a vida minimamente estruturada comete um deslize financeiro ela toma um tapinha na cabeça, e quando o pobre comete um deslize financeiro ele toma um murro na boca. Não há margem de erro, os efeitos de cada tropeço são sentidos por anos.

Rico deu uma extravasada e entrou no cheque especial "porque todo mundo é filho de deus e eu tô cheio de problemas para lidar", pagou ali 10% de juros em cima dos 2.000 negativos, no mês seguinte recebeu um salário legal, cobriu os 2.200, apertou o cinto e seguiu com a vida.

Pobre deu uma extravasada e entrou no cheque especial. O aluguel e as contas de casa já tomam o salário inteiro, então ele não vê outra alternativa a não ser pegar um empréstimo. Ele engole a marmita rápido, porque tem que usar o horário de almoço para resolver essa bucha. Vai no banco, chega exausto e preocupado, o banco diz que não rola pegar o empréstimo, porque a conta dele já está no negativo. Ele anda mais um quarteirão, preocupado em voltar logo para bater o ponto, e encontra uma financeira. Lá ele consegue o valor que precisa, parcelado em 12 vezes, a uma taxa de 17% ao mês, que ele não sabe muito bem o que representa. Os 2000 reais tomados serão pagos em 12 vezes de R$ 400. O valor total a ser pago vai beirar os 5.000. Quanto tempo esse cara vai levar para colocar a vida financeira em ordem?

De maneira nenhuma estou afirmando que inteligência financeira não é fundamental – seria uma hipocrisia sem tamanho, já que eu dedico a ela a maior parte do meu tempo acordado –, mas é importante que a coloquemos no seu devido lugar. Para que a educação financeira não tenha alcance extremamente limitado, é preciso que venha acompanhada de políticas públicas, de órgãos de defesa do consumidor, de uma regulação menos parcial e seletiva e, em última instância, de novos referenciais de sucesso – enquanto levarmos em consideração apenas números e percentuais na hora de decidir quem vai estampar a capa das revistas, não iremos muito longe. Ela é um pilar importantíssimo em qualquer processo de transformação social mais profundo, mas sozinha ela não resolve a vida de ninguém.

Este texto foi originalmente publicado em minha coluna quinzenal no Valor Investe. O link para acesso ao texto original está aqui→

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eduardo antunes