'Tive meu salário reduzido. E agora?'

Dia desses estava conversando com a querida Nath Finanças, orientadora financeira com foco em baixa renda e, no meio da conversa, ela puxou uma discussão bem interessante:

"Amuri, 7 milhões de pessoas tiveram seus salários (e jornadas) reduzidos por conta da pandemia, isso se levarmos em conta só os privilegiados que contam com um emprego formal… como faz planejamento financeiro nesse contexto? Dá?"

A resposta é sim. Dá. Não estou dizendo que é fácil, nem que essa situação triste se resolve com educação financeira (esse é um comentário bem comum, ingenuamente meritocrático e hipócrita), mas dá e, digo mais, não só dá como vai aumentar drasticamente a chance de que enfrentemos os próximos meses de uma maneira minimamente equilibrada e saudável, mesmo com uma eventual redução.

Talvez constatemos um panorama dolorido, talvez vejamos números que deixam o estômago embrulhado e o peito meio apertado, mas com certeza será útil, servirá de apoio para nossas próximas decisões.

Em épocas de crise, tão crítico quanto um corte na renda é a tensão e a falta de disponibilidade cognitiva que costuma compor esse cenário complicado. Entramos em um modo de sobrevivência em que, exaustos, passamos dedicar tempo e atenção apenas ao que é vital para o curtíssimo prazo. Ignoramos tudo o que não é "pra ontem", focamos só no urgente – pagar o boleto é urgente, fazer um planejamento financeiro não. É um reflexo natural e útil, mas insustentável no longo prazo. Levando isso em consideração, vou tentar resumir, nos próximos parágrafos, o processo de planejamento financeiro que desenvolvo mais longamente e em detalhes no Dinheiro Sem Medo (as imagens que apoiam as explicações foram retiradas de lá).

São dois exercícios que, a princípio, são bastante simples. Se sentir que pode te ajudar por aí, pega uma folha de papel e vamos juntos. Não se preocupe em aprofundar cada um dos pontos, a ideia é oferecer uma alternativa rápida e que demande pouco esforço. Depois você refina. Na prática, o planejamento financeiro é uma sucessão de fazer, analisar, refinar e fazer de novo. Para colocar a mão na massa, não faz sentido esperar.

Exercício 1: Fotografia

Tente fazer uma lista dos gastos fixos, ou seja, os gastos que acontecem todos os meses. Trata-se dos valores que serão debitados da sua conta, você estando de bom humor ou não, quer você pague no boleto ou no cartão. Procure ser preciso, mas não deixe o exercício de lado se não souber algum valor com exatidão. Você pode atualizar essa lista depois.

Vale lembrar que aqui não entram os gastos que mudam a cada mês (como supermercado, gasolina etc.). Isso virá a seguir. A maneira de listar os gastos é indiferente, mas é bem importante que esteja tudo bem claro e visível. No nosso exemplo, vamos utilizar a mesma folha do exercício anterior. No fim, você deve encontrar algo assim:

 
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Some esses valores e anote.

Essa primeira listagem (a dos gastos fixos) costuma sair com certa facilidade, uma vez que esses gastos já estão incorporados à nossa rotina. Vamos seguir com nosso mapeamento, agora tentando estimar os gastos variáveis: alimentação, transporte, algum lazer, gastos pontuais. Essa listagem já não é tão simples. A ideia é estimarmos, com a máxima precisão possível, quanto gastaremos, em média, por mês, com nosso dia a dia. Se pensar em um mês inteiro for difícil, pense por semana. Com o custo variável por semana já estimado, fica bem mais fácil, é só multiplicar por quatro e chegaremos no valor variável mensal. Dê uma olhada na coluna da direita, na imagem abaixo:

 
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Como vocês podem perceber, essa listinha de gastos variáveis foi criada em 2017, enquanto eu escrevia o livro, em uma época que era maravilhosa e a gente não sabia. Substitua o que precisar ser substituído e adapte para sua realidade.

A soma dos gastos fixos e variáveis é um primeiro palpite de quanto custará nosso próximo mês. É uma base de planejamento maravilhosa, um número desconhecido por muita gente. Vamos ao segundo exercício. É possível que você tenha tido dificuldade em tirar essa fotografia da sua vida financeira, e muitas vezes isso acontece porque parte significativa dos nossos gastos é realizada através do cartão de crédito. Não se preocupe com isso. Atenha-se aos gastos por enquanto, não à forma de pagamento. Falo bastante sobre isso no episódio 11 do meu podcast. Ele se chama Uma Horinha Sobre Grana e está disponível aqui e no Spotify. Se você é da turma do “sinto que preciso largar o cartão de crédito mas não consigo”, recomendo que ouça depois desse exercício. E se você sempre se perguntou se as milhas valem a pena, te recomendo a edição 5.

Exercício 2: Quadrantes

Aqui nós colocaremos em perspectiva a nossa fotografia (criada no exercício anterior). A ideia é dar menos relevância para o "planejamento do mês" e focar em uma unidade de tempo menor, a semana. Por consequência, vamos partir de uma folha em branco separada em quatro. O quadrante 1 representa a primeira semana do mês, o quadrante 2 representa a segunda, e assim por diante.

 
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Para facilitar a didática, vamos focar em um único quadrante. Perceba que o quadrante inicia com seu saldo bancário, é a caixinha com fundo branco. Logo abaixo estão as despesas fixas e o "pacotinho de variáveis", que calculamos no exercício da fotografia. Na parte de baixo do quadrante está o saldo final da semana que, por consequência, será o saldo inicial da próxima.

 
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Você precisa ganhar clareza da sua vida financeira. É um conselho válido em todas as situações, mas é primordial em épocas críticas de redução de salário. Uma vez que você fez a previsão de uma semana, fica fácil fazer da próxima:

 
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Avance nessas previsões. É provável que você perceba que, mesmo que você veja números complicados, a sensação de ganhar algum controle (mesmo que sutil) é bem confortável. Resista a tentação de esmiuçar tanto os dados do passado, e procure driblar a culpa, se ela surgir. Planejamento bom é planejamento que olha pra frente, que serve de apoio para a tomada de decisão. Com os quadrantes feitos, faça a análise com calma e, se necessário, peça ajuda a um amigo.

Esta é a versão simplificada dos dois exercícios de base que eu descrevo e aprofundo no Dinheiro Sem Medo. Coloque a mão na massa, mesmo que não fique perfeito logo de início.

O processo de planejamento é iterativo: faz, testa, refina, refaz, testa, refina, repete. Um planejamento com falhas, que você sente que é seu, é muito melhor do que um planejamento redondinho, impecável, do qual você não se empodera, não faz uso e não transforma em ferramenta para tornar sua vida melhor.

Planejamento sempre resolve? Planejamento é o que falta?

De maneira nenhuma quero dizer que planejamento (e educação financeira, de forma geral) é solução universal, que ele é a saída para o cenário desolador com o qual estamos lidando. Meu objetivo por aqui (com esse texto e com meu trabalho) é oferecer ferramentas que talvez sejam úteis para tornar essa fase um pouquinho menos difícil.

Se surgirem dúvidas na elaboração da sua fotografia, dos seus quadrantes ou do seu planejamento, não hesite em me dar um oi no Instagram (@eduardoamuri), eu farei o possível para ajudar.

Um abraço grande e seguimos.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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Heloísa Sanchez