Vai passar
Os despautérios fartamente salpicados de falta de humanidade dos governantes, a mídia caça-cliques, a reatividade dos analistas que, cansados, emplacam conclusões trágicas em cima das poucas variáveis de que dispõem, amigos e pessoas queridas que adoecem (ou partem), a exaustão de viver trancado se preocupando em socar álcool gel em tudo, a estranheza de passar meses sem comprimir gostosamente o próprio peito contra o peito de outra pessoa. Tudo isso nos tranca, nos submerge em uma piscina de torpor, nos exaure, faz com que percamos a clareza de um fato delicioso, um ponto que só de escrever aqui faz com que meu pescoço amoleça um pouquinho: isso tudo vai passar.
O objetivo por aqui não é, de maneira nenhuma, colocar panos quentes, adotar um discurso otimista (calhorda), atropelar lutos, nem tampouco questionar a gravidade da tragédia com a qual estamos lidando, mas lembrar – a vocês e a mim mesmo, porque tem dias que a fé fraqueja – que, sim, mesmo que demore, mesmo que enfrentemos limitações básicas por um longo período, mesmo que tenhamos que remodelar diversos aspectos da nossa vida, essa sensação de engasgo, esse nó na garganta, essa voz embargada, isso tudo vai passar.
Sou fanzoca do Antonio Prata e fico embasbacado com a habilidade que ele tem de seguir parágrafos a fio defendendo uma ideia profunda apenas versando sobre pequenices, sobre migalhinhas, sobre uma sutileza qualquer, sem soar frívolo ou superficial em nenhum momento, quase como se a vida fosse uma sucessão de ganchos para a prosa. Bom, minha realidade por aqui é meio diferente. Eu me envolvo em projetos que buscam tornar mais saudável a nossa relação com o dinheiro. Meu trabalho é, em certa medida, cartesiano, então vou justificar minha preocupação com meu ponto (o "isso tudo vai passar" – é a terceira vez que escrevo essa frase hoje, vou levar isso para meu terapeuta) utilizando o universo das finanças pessoais de maneira prática.
Ontem eu estava conversando com um aluno sobre uma NTN-B, um título do Tesouro Direto atrelado à inflação, cujo vencimento, na maior parte das vezes, é longo. Comentei que, na minha opinião, era uma opção bastante interessante para tempos como esse, de instabilidade política e econômica, em que qualquer leitura a respeito das opções mais voláteis e potencialmente rentáveis carece de assertividade. Lembro de falar algo como "o prêmio está gordinho e o risco é baixo caso você se disponha a levar o título até o vencimento, que acontecerá em 2035, daqui 15 anos". Ele reagiu de bate-pronto "mas Amuri do céu, com tudo isso que tá acontecendo eu não faço a menor ideia se vou estar vivo no ano que vem, imagina em 2035...". Eu entendo a exaltação, e essa reflexão, de maneira nenhuma, tem por objetivo deslegitimar o desconforto, mas a ponderação dele é estatisticamente pouco justificável. Com vírus ou sem vírus, em épocas mais estáveis ou em épocas de caos, as chances de que ele (um cara saudável de 30 e poucos anos) morra tão logo são pouquíssimo significativas.
De fato, claro, podemos morrer daqui a poucas horas, porém tomar uma decisão financeira partindo do pressuposto de que este fato é provável é uma estratégia ruim. É ingênua, embora compreensível: frequentemente utilizamos uma heurística (um atalho mental) que a psicologia econômica define como heurística de disponibilidade – julgamos a frequência ou a probabilidade de um evento pela facilidade com que exemplos desse evento surgem na nossa mente. A capa de todos os jornais contabiliza a quantidade de vidas perdidas diariamente. Poucas vezes, nas últimas décadas, esse assunto esteve tão presente, então é natural que nosso julgamento seja afetado, mas isso não significa que devamos desconsiderar o longo prazo em nossas decisões. Se você é privilegiado ao ponto de ter a possibilidade de se preocupar com os próximos anos, você provavelmente deveria fazê-lo.
Podemos sair do mundo dos investimentos e trazer um raciocínio semelhante para questões mais rotineiras, do nosso dia a dia financeiro mesmo. Com toda a paisagem coletiva de desassossego e com os inúmeros novos pontos de fricção (põe máscara, tira máscara, passa pano, troca de roupa, limpa o sapato, lava as embalagens) nossa disponibilidade cognitiva para lidar com fluxos financeiros básicos também é afetada, e isso não acontece simplesmente porque esse assunto é considerado meio chato por muitas pessoas, mas sim porque a energia necessária para encarar as pequenas questões econômicas e a energia necessária para tocar todas as outras diversas áreas da vida vêm exatamente do mesmo lugar. Pessoas que lidam com dietas alimentares restritivas e dívidas ao mesmo tempo, por exemplo, tendem a encontrar mais dificuldades do que pessoas que lidam com apenas um desses cenários de contingenciamento por vez.
Por vezes, quando nosso depósito de disponibilidade cognitiva está vazio, somos induzidos a um comportamento auto-destrutivo: nós chutamos o balde. "Já que está tudo ferrado mesmo, passa o cartão aí, depois a gente vê como faz". Quase como se o fato de termos perdido o frágil controle que temos (seja por algum deslize evitável, seja por um atropelo da vida) tornasse menos recriminável uma atitude que, em outra época, seria julgada, por nós mesmos, como extremamente irresponsável. O simples fato de reconhecer essa postura já aumenta consideravelmente as chances de voltarmos para o eixo (o antídoto para o chutão do balde não tem a culpa entre os ingredientes), além de reduzir o tempo necessário para que essa retomada aconteça – esse ponto é extremamente importante: é inviável esperar que os deslizes não aconteçam, mas é perfeitamente possível reduzir o tempo em que ficamos à deriva.
O fato de nos negarmos a olhar para as situações desconfortáveis não as torna menos graves, mas reduzem drasticamente as chances de melhora. Se dê esse presente e acenda a luz, encontre um espacinho na sua rotina e coloque seus números no papel.
Não me parece uma época propícia para gritos otimistas vazios, para "afiar o machado", para "revolucionar sua vida", para "sair da crise melhor do que entrou", como dizem as inúmeras (e, ao meu ver, nocivas) propagandas que pipocam por aqui, mas é importante que, na medida do possível, praticando um olhar compreensivo para nós mesmos e para as situações que nos cercam, tentemos manter as perspectivas e agir de acordo.
Isso tudo vai passar.
Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.
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