Sorriso Falso

Finalizei o rascunho do Dinheiro Sem Medo, meu primeiro livro, há quase 5 anos.

Escrever uma peça mais longa é algo bem curioso: dá tempo de você se apaixonar e desapaixonar pelo texto muitas vezes, enfrentar dias muito produtivos e finais de semanas inteiros que resultam em um ou dois parágrafos capengas, sentir que tais pontos foram levados ao limite – o que é delicioso – e sentir que outros foram até onde sua capacidade argumentativa foi capaz de levá-los – é uma sensação estranhamente satisfatória também: você sabe que há mais do lado de lá, mas te falta perna para chegar, então você simplesmente relaxa.

Lembro quando comecei a colocar no papel um fluxo de raciocínio que, para mim, era bem importante. Era um pequeno ensaio sobre a versatilidade do dinheiro, uma exaltação à pluralidade de papéis que ele era capaz de assumir, dado o contexto e a habilidade de quem o detém. Lembro de ter elencado alguns exemplos: "o dinheiro pode assumir o papel de suporte, o papel de corrimão, pode potencializar movimentos, pode comprar conveniência, pode nos garantir o direito de refazer escolhas...". Foi algo nessa linha, uma ou duas páginas e fim, era o suficiente para a minha proposta.

Esse punhado de parágrafos pipoca na minha cabeça com frequência. Mergulho na vida de um cliente ou aluno, aprendo a enxergar o mundo por outro prisma e percebo que poderia tê-los desenvolvido mais longamente, poderia ter levado a narrativa para outro lugar. Está tudo bem, me faltava perna.

Se eu pudesse complementar esse capítulo hoje, porém, rabiscaria um pouquinho sobre os aspectos velados e, talvez, menos nobres.

Gosto bastante de um experimento organizado pelos pesquisados Aldo Rustichini e Uri Gneezy, em Israel.

A proposta é simples: partimos da premissa que os pais das crianças que passam o dia na creche se atrasam para buscá-las e que, portanto, poderíamos introduzir uma multa para os que perdem a hora, como uma tentativa de fazer com que sejam mais pontuais. Uma medida disciplinadora e, de certa forma, "educativa": ao invés de puxar pela orelha, puxamos o bolso.

Foi um fracasso completo, a quantidade de atrasos aumentou.

As figurinhas abaixo foram retiradas do estudo original – as multas foram inseridas na semana 4:

Aparentemente, transações financeiras (pequenas) não são capazes de substituir os protocolos sociais – ao menos não da maneira que intuiríamos, munidos do nosso senso comum.

Se, em caso de atraso, eu tiver que lidar com a frustração das cuidadoras, que precisam gerenciar as demandas do meu filho por mais tempo, me esforçarei para não atrasar.

Se, em caso de atraso, eu tiver que pagar uns poucos dinheiros, meu esforço para não atrasar será menor, afinal, "eu tô pagando!".

É como se o dinheiro legitimasse minha contravenção. Estou comprando o direito de não me importar.

Estou escrevendo essa newsletter sentado no café do aeroporto de Congonhas. Antes de me acomodar por aqui, dei uma passada na livraria que fica em frente e cruzei com a prateleira dos mais vendidos. Ali pelo meio da lista está o livro escrito por um empresário (realmente) rico – vou chamá-lo de Aristeu. Era uma coletânea de reflexões motivacionais variadas.

Veja, não é nada relacionado à área de atuação primária Aristeu, não são ponderaçoes sobre o sistema no qual ele (ou a Aristeu Corporation) estava inserido, nem são textos embasados no estudo aprofundado de determinado ponto.

Algumas discussões talvez se assemelhem com a conversa que eu tive com o Fábio, grande amigo com quem tomei café da manhã hoje, antes de voltar para Brasília. Eu não entendo grandes coisas de boa parte dos assuntos sobre os quais conversei com o Fábio. Ele também não. Estávamos ali pelo prazer da companhia um do outro. Absolutamente ninguém vai se interessar pela nossa conversa. Nem a Gabriela, minha esposa, nem a Silvia, esposa dele, nem ninguém.

Mas o livro que reune as digressões do Aristeu está entre os 10 mais vendidos do Brasil.

O dinheiro compra o palco.

Entrei no avião e sentei na poltrona 4A, que é uma daquelas poltronas com mais espaço para as pernas. Posso me sentar nela porque eu paguei: o dinheiro compra conforto para aqueles que se parecem com o Tropeço da Família Adams.

O avião tem internet. Mas só tem se você pagar. Eu paguei, porque adiantando o texto dessa newsletter durante o voo, eu ganho uma manhã livre durante essa semana e, no contexto em que me encontro, meu tempo vale muito mais do que meu dinheiro.

O dinheiro não compra tempo, mas eventualmente compra o direito de escolher de como gastá-lo.

O comissário de bordo é muito gentil e eu imagino que tenha um sorriso bonito. Não consigo vê-lo porque ele está de máscara e nós estamos no meio da pandemia. Nós estamos no meio da pandemia e ele está enfiado em um avião fechado com centenas de pessoas por mais de 8 horas por dia, sorrindo constamente.

O passageiro ao meu lado está realmente bravo porque trouxe um pacote de chocolates e não pode comê-los durante o voo. Ele já tentou tirar a máscara algumas vezes, e o comissário de bordo, com toda a delicadeza, pediu que ele a recolocasse, "para a segurança de todos". Eu sinto vontade de dar uma cotovelada nas costelas do passageiro sem máscara.

Mas o comissário sorri.

E o comissário está sorrindo em um ambiente fechado porque faz parte do trabalho dele sorrir. Ele foi contratado para ser desmedidamente doce, para demonstrar afeto por pessoas que ele nunca viu, e ele o faz porque a companhia aérea paga. O comissário é pago para desempenhar um papel. Nos dias bons e nos dias ruins.

O dinheiro compra a desconexão entre nosso estado emocional e nossas ações.

Parte das reflexões trazidas no texto surgiram durante minhas últimas leituras. Estou gostando bastante de ambas:

  • O que o dinheiro não compra, do Michael J. Sandel, filósofo americano;

  • The Managed Heart: Commercialization of Human Feeling, socióloga, também americana

Carnav... gravações, muitas gravações :)

Amigos, separei o carnaval sem bloquinhos para finalizar o processo de gravação das novas aulas dos programas de acompanhamento! Aos alunos, vocês receberão todo o cronograma de publicação!

Aos não alunos, estamos com as listas de espera abertas! Como sempre, serão 300 vagas e vocês podem realizar a aplicação através deste link→! Os inscritos na lista de espera contam com um desconto de 25% – é um presente pelo tanto de gogó e pentelhação nas redes sociais que eu economizo. 

É isso por hoje, amigos.

Um abraço grande e seguimos,
Amuri


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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Heloísa Sanchez