O que o videogame me ensinou sobre dinheiro

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Eu fui do time do Super Nintendo – as crianças da minha geração se dividiam entre os que veneravam o Super Mario (meu time, os devotos do Super Nintendo) e os que veneravam o Sonic (o outro time, os devotos do Mega Drive). Na verdade, eu curtia mesmo joguinhos de plataforma, aqueles em que você controla um personagem que vai andando, pulando obstáculos e derrotando inimigos pelo caminho. Neste tipo de jogo, existe uma barrinha, que geralmente fica no topo da tela. Nós chamávamos aquela barrinha de “vida”. Conforme você vai esbarrando nos obstáculos ou tomando uns cascudos dos inimigos, você vai perdendo pedacinhos dessa barra. Quando a barrinha termina, você "morre”.

Se você observar atentamente, perceberá que um certo fenômeno ocorre neste tipo de jogo.

Você inicia a fase com sua barrinha cheia, e você caminha displicentemente pela tela, desatento, se permitindo tomar umas porradas pelo meio do caminho, esbarrando em alguns obstáculos. Geralmente você o faz com o corpo meio jogado no sofá, bem relaxado. Em um certo momento, você percebe que resta pouca “vida”, que sua barrinha está quase no fim, e então você ajeita o corpo, encontra a posição mais confortável e passa a caminhar com muita atenção, tomando muito cuidado para não esbarrar em nada. É comum que esse "último pedacinho de vida” dure muito mais do que os primeiros, que foram displicentemente perdidos logo no início. Os últimos pedacinhos são preciosos, é como se eles valessem mais do que todos os outros. Logo percebi que os pedacinhos de vida desperdiçados no começo geralmente fazem falta no final.

“Vou tentar tomar muito cuidado desde o começo então! Vou fingir que tenho pouca vida, mesmo estando com a barrinha cheia!”.

Na época isso me pareceu bastante genial, foi a estratégia mais refinada que meu eu-de-12-anos conseguiu formular. Coloquei em prática, mas não funcionou – nunca fui muito bom com videogames, afinal. Não importava o quanto eu forçasse, o finalzinho da minha barrinha era sempre muitíssimo melhor aproveitado do que o começo. Este texto, em partes, é um recado para meu eu-de-12-anos: caro eu-de-12-anos, fique tranquilo, não foi culpa sua!

As ciências comportamentais — em especial a psicologia econômica, a economia comportamental, a neuroeconomia e as finanças comportamentais — explicam minha frustração juvenil com facilidade: a escassez simulada não produz o mesmo efeito do que a escassez real. Uma coisa é, de fato, estar a perigo, correndo o risco de perder todo o progresso dos últimos minutos de jogatina, outra coisa é fingir que meu próximo vacilo terá consequências, sabendo que, na verdade, nada acontecerá. Fingir, ingenuamente, que tenho “pouca vida” não me coloca em um estado de alerta real.

É bastante provável que você já tenha experimentado essa falta de autonomia. Talvez você já tenha percebido que, quando sua conta está mais cheia, você, de certa forma, age de maneira mais displicente. Gasta com mais facilidade. É menos ponderado. Preocupa-se menos. Quando a conta está mais magrinha, você é mais criterioso, cuidadoso, valida mais de uma vez se tal despesa é, de fato, imprescindível. No fim do dia, a verdade é que temos menos controle do que gostamos de acreditar que temos. Não conseguimos “ativar”, conscientemente, um certo hiperfoco, um cuidado extra com os recursos que são finitos (a energia, o dinheiro, o tempo). Essa limitação — que, por fim é benéfica e protetiva, já que permanecer em estado de alerta é extremamente cansativo — precisa ser levada em consideração quando estamos pensando em planejamento financeiro.

Se aceitamos que nossa disponibilidade para lidar com as finanças é menor do que imaginamos, é natural que nos preocupemos em manter tudo o mais simples possível. Para a maior parte das pessoas, uma conta bancária e um cartão de crédito, e nada mais do que isso, já é o suficiente. Qualquer coisa além disso tomará uma fração da pouca energia disponível e fará com que a atenção disponível para lidar com o que realmente importa (a estratégia, as decisões realmente fundamentais) seja menor. “Ah, mas eu não pago nada para ter essa conta bancária e esse cartão extra”. Mesmo assim. Hoje em dia é incrivelmente fácil criar vínculo com uma instituição financeira. Se, e somente se, você precisar de uma nova conta ou de um novo cartão, você solicita. Não faz sentido criar uma estrutura baseado em um cenário de exceção.

Você já deve ter lido em algum livro ou texto algo parecido com o “pague primeiro a você mesmo”. Não é uma estratégia ruim, ela sugere que você destine parte do seu salário para sua conta de investimentos no exato momento em que o salário pinga. É como se essa poupança mensal se tornasse uma conta fixa, tão importante quanto a conta de luz. Muitas pessoas optam por fazê-lo no próprio banco. Vamos pensar em uma pessoa que recebe R$ 3.000 por mês e se propõe a separar R$ 300. Caiu o salário, ela abre o internet banking, ou o aplicativo do banco no celular, e transfere para a poupança ou fundo de investimentos com liquidez imediata (o tal do "D+0”, ou seja, caso você queira resgatar o montante total ou parte dele, é só solicitar que o dinheiro volta para a conta corrente no mesmo dia).

É interessante, mas podemos melhorar.

Ao transferir um pedaço do salário para um investimento do próprio banco, nosso personagem está tentando simular um cenário de escassez (“bom, ao invés de viver com R$ 3.000, vou viver com R$ 2.700, já que transferi R$ 300 para minha conta poupança”). A mensagem é fraca, porém. Ele sabe que pode sacar esse dinheiro com meia dúzia de cliques ou, pior ainda, com três ou quatro toques na tela do celular. A tentação é grande demais. Podemos, facilmente, criar um cenário muito mais poderoso e eficiente, se, ao invés de transferirmos essa fração do salário para um investimento do próprio banco, transferíssemos esse montante para outro lugar. Em um primeiro momento, um bom investimento em uma corretora de valores, com liquidez ligeiramente menor (D+5, D+15, D+30), resolve. O simples fato de mandar esse dinheiro para outro lugar, para fora do fluxo bancário mensal, já fará com que pensemos duas vezes antes de sacar e, por consequência, fará com que sejamos mais cuidadosos com nosso fluxo bancário.

É como se tivéssemos carimbos — “reserva de emergência”, “faculdade do meu filho”, “patrimônio”, etc. — capazes de definir o destino do montante que optamos por separar em determinado mês. O carimbo simbólico, aliado ao fato de que estamos tirando esse dinheiro do nosso fluxo normal (através de uma corretora ou banco de investimentos), cria um contexto muito mais poderoso, muito mais refinado.

“Esses R$ 300, que saíram da minha conta e chegaram na corretora, viraram uma parte da minha reserva de emergência, e só sairão de lá com uma justificativa muito boa” ou “os R$ 300 desse mês foram para minha aposentadoria, os R$ 300 do mês que vem vão bancar parte dos estudos do meu filho”. Com a reserva de emergência já montada, nada impede que passemos a trabalhar outras camadas menos líquidas, mais imobilizadas. Um título com vencimento mais longo, um fundo um pouco mais volátil com foco no longo prazo.

Não tenha medo ou vergonha de criar narrativas mais lúdicas, de brincar com essa história toda — nossa relação com o dinheiro não precisa ser dura, sisuda. No fim das contas, é como se estivéssemos protegendo nosso eu-do-futuro dos deslizes inevitáveis do nosso eu-do-presente.

Ele agradecerá.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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eduardo antunesvalor