Bolinha de tênis
Em um passado razoavelmente distante eu fui um programador. Um bom programador, aliás. Não um daqueles cabeçudos geniais que recebem convite para trabalhar na Microsoft ou no Google, mas um bom programador. Presenciei um movimento interessante no mercado dos computeiros: a febre das metodologias ágeis.
Se você não é da área talvez isso tenha soado meio grego, mas o conceito geral é simples. A ideia é tornar o processo de desenvolvimento de software mais leve, mais rápido, mais flexível, mais orientado ao que de fato é importante para o cliente. Livros e mais livros sobre o tema foram lançados, todo mundo queria fazer parte da patota hipster descolada que deixava os métodos mais tradicionais para trás (eu desconfio que foi nessa época que, com ressalvas, o nerd computeiro passou a ser olhado com menos desdém).
Bom, fato é que eu estava no meio desse rolo, a empresa que eu trabalhava na época demonstrou um tiquim de abertura e eu me enfiei numa turma de formação avançada em Scrum, uma das temáticas presentes nesse mundinho ágil, que nesse momento já nem se chamava "ágil" mais, e sim agile, em inglês, com uma pronúncia estranha e exageradamente rebuscada, "vocês também trabalham com adjaiel no projeto de vocês?".
O professor era engraçadão. Todo mundo já teve um professor engraçadão, que dá uma forçada na amizade, emenda algumas piadas sem muito timing, esse era um deles. No meio do curso, ele propôs uma atividade que foi um lance meio dinâmica de RH baixo astral.
Era assim: nós, os quinze aspirantes a seres ágeis, tínhamos que ficar de pé, dar as mãos e encostar um pé no pé do colega da frente e o outro pé no pé do colega de trás, meio que em fila. O primeiro da fila dava um passo com o pé livre, em seguida movia o pé que estava encostado no segundo da fila (sem desencostar!), que em seguida movia o outro pé, que estava conectado ao terceiro rapaz da fila, num movimento que parecia o de uma centopéia. Precisávamos nos mover pela sala, sem desconectar os pés e as mãos, partindo de um cantinho e caminhando centopeiamente em busca de uma bolinha de tênis que estava em cima de uma cadeira, no canto oposto. O grande objetivo era pegar a maldita bolinha de tênis.
O processo de se movimentar era ridiculamente complexo e cheio de falhas, porque o professor propôs que tentássemos finalizar em menos de 1 minuto e 50 segundos já que, segundo ele, esse era o recorde da última turma. Todos estavam apressados e compenetrados nos próprios pés. Suados e sem muita dignidade, sem levantar a cabeça (já que o caminho era bem evidente, era só se mover até o canto oposto) finalmente conseguimos impor algum ritmo, chegamos até a cadeira e... a bolinha não estava mais lá.
Éramos quinze marmanjos com olhos saudáveis, mas nenhum de nós reparou que, enquanto nos distraíamos com nossos pés, o professor, descaradamente, sem disfarçar, jogou a bolinha para o outro canto da sala. Ninguém viu. Estávamos todos tão compenetrados na microtarefa de dar o próximo passo que esquecemos de validar se ainda estávamos caminhando na direção certa, mirando o que de fato queríamos.
Nunca me esqueci dessa história da bolinha de tênis. Na época não me pareceu algo tão importante, lembro de ter achado meio auto-ajuda pastel de vento, mas a verdade é que, como vocês podem perceber, me marcou bastante. Estou escrevendo esse texto, catorze anos depois, com um fiozinho de vergonha, desses que a gente sente quando se vê cativado por um livro meio tosco ou uma música dessas realmente ruins.
Se eu tivesse parado e levantado a cabeça por dois ou três segundos, para me certificar que o objetivo (a bolinha de tênis) ainda se encontrava lá, eu teria corrigido a rota. Eu não precisaria de uma longuíssima reflexão, de um estudo aprofundado, de nada. Bastariam alguns momentos desconectados das tarefas do dia a dia (os passos a serem dados sem desencostar) e pronto, eu conseguiria rapidamente me reestruturar. Com alguma sorte, eu até poderia ajudar o resto da centopéia.
Eu acho que eu nunca passei mais de uma ou duas semanas sem dizer algo parecido com "mas se o objetivo é blablabla, não seria melhor fazer blebleble?" para um cliente ou aluno. Na maior parte das vezes não é nada muito refinado, são pontos lógicos que seriam rapidamente diagnosticados se simplesmente parássemos, intencionalmente, por alguns minutinhos.
De tempos em tempos, nem sempre com tanto sucesso, num estalar de dedos metafórico, tento me perguntar onde é que está a bolinha de tênis. Não é raro que eu me pegue falando para mim mesmo frases parecidas com as que eu costumo falar para os alunos e clientes.
"Mas Amuri, se o objetivo é estar perto das pessoas que gostam do seu trabalho, não faria sentido escrever no Valor Investe toda semana?”
Claro que faria. Olha uma bolinha aí.
Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.
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