Deus é uma nota de 100

No início da pandemia, naquela época em que a gente acreditava que era coisa de 2 ou 3 semaninhas, eu puxei uma roda de papo on-line em uma empresa, com todos os colaboradores presentes. Umas 70 pessoas. Analistas, porteiros, a presidenta, diretores, todos lá e, vejam que surpresa, todos empolgadíssimos, olhando para a telinha do Zoom com a mesma alegria que eu olho para uma barra de chocolate – isso não é lá muito comum em eventos sobre educação financeira, amigos, eu sei onde eu estou pisando, eu tô nesse baile tem uns anos.

Num determinado momento estávamos discutindo sobre as nossas referências quando o assunto é dinheiro. Algumas pessoas comentaram sobre os próprios pais (tratando-os como exemplos ou anti-exemplos), outros contaram dos cursos que já fizeram, citaram alguns youtubers, enfim, são respostas bem comuns.

Passada aquela filinha fofa que as pessoas educadas fazem durante as video-conferências (claro, Marcelo, pode falar primeiro), uma moça (vou chamá-la de Rafaela daqui pra frente) abriu o microfone, claramente encabulada, se sentindo inferior e deslocada, e falou algo mais ou menos assim:

"Amuri, eu sou negra e periférica, tenho pouquíssimo dinheiro, minha família tem pouquíssimo dinheiro e eu não tenho nenhuma referência sobre dinheiro. Só o rap mesmo"

Perguntei se ela gostava de Vida Loka parte 2, dos Racionais.

Ela sorriu e eu fiquei com isso na cabeça por semanas. Essa empresa (se isso não é cuidado com o funcionário, eu não sei o que é) havia contratado o programa Dinheiro Sem Medo para todos e logo chegou o momento da sessão individual da Rafaela. Retomamos o assunto e eu quero dividir com vocês alguns poucos pontos sobre essa história toda.

Compreensível que a Rafaela se sinta envergonhada porque cultura negra e periférica é, automaticamente, vista com desdém. É tida como algo de menor valor, reles, sem profundidade. O rap, em especial, para além desse pano de fundo, ainda é considerado como música de bandido.

Bom, é um preconceito imbecil e infundado? Sim. A Rafaela sabe disso? Claro que sabe. Isso faz com que ela se sinta à vontade para dizer que sente que aprendeu bastante com a música? Não faz, e isso é uma grande tristeza.

Primeiro, é claro, porque a machucaé falaciosoum desserviço.

Segundo, amigos, porque na cultura popular existem passagens mais inteligentes e profundas do que grande parte do que já produzimos em termos de educação financeira formal.

"Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente (inteira)
Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz
De poder comprar o azul, o vermelho
O balcão, o espelho
O estoque, a modelo*, não importa
Dinheiro é puta e abre as portas
Dos castelos de areia que quiser"

A linguagem direta assusta ouvidos puritanos, acostumado com rodeios, mas é só deixar o requinte linguístico despropositado de lado que fica óbvio que estão sendo retratados ali pontos que o livretinho de educação financeira não alcançou com tamanha precisão.

Podemos até brincar de escrever difícil:

"Nos nossos estudos, percebemos que existe uma relação retroalimentada (talvez causal) entre a falta de recursos e a percepção de felicidade. Os respondentes relataram senso de pertencimento ao se perceberem capazes de adquirir, com recursos próprios, os diversos itens apresentados nos mostruários, mesmo os que não foram capazes de afirmar, com precisão, o que fariam com os bens adquiridos. Por fim, concluímos que é inegável o alto poder de barganha proporcionado pelo capital, embora, é claro, os itens passíveis de aquisição são efêmeros"

Essa última frase é uma (péssima) tentativa minha de escrever de um jeito rebuscado e tosco que o dinheiro é puta e abre portas de castelos de areia, que inevitavelmente se dissolvem. A forma conversa com quem tem que conversar. É para isso que a linguagem serve, o restante é acessório. Perfumaria.

Embora não seja um profundo conhecedor do cenário do rap nacional, gosto muitíssimo do trabalho do Mano Brown. Sinto que certas incoerências e desconhecimentos são abraçados e isso me tranquiliza. Ao mesmo tempo em que o trabalho é incisivo, feroz, ele é feito com certa humildade, característica tão em falta no mundo da pesquisa formal.

Mas... ainda sobre dinheiro, não existem erros nesse monte de versos de rap? Interpretações ingênuas? Abordagens que geram sofrimento? Coisas que são ditas e desditas? Claro que existem. Assim como existem deslizes crassos no cenário acadêmico. Obras longuíssimas que por anos foram consideradas balizas, pontos de apoio, que embasaram o trabalho de muitos e que, de uma hora para outra, são postas à prova, recebem críticas, alguns conceitos são refeitos, e tudo bem.

Falta esse mesmo zelo e amplitude no olhar dos que julgam a sabedoria que emerge, organicamente, das pessoas. Sem títulos acadêmicosSem pompaE com alguns palavrões.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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Heloísa Sanchez