Feijão com arroz
Amigos, estava assistindo uma entrevista do MKBHD, um youtuber americano que produz peças lindas sobre tecnologia. Ele é muito inteligente, gosto muito do trabalho dele. Dessa vez, porém, ele estava comentando um pouquinho sobre seu passado esportivo: ele jogava golfe e ultimate. Você provavelmente não sabe, mas ultimate é o esporte de adultos associado ao frisbee – sim, amigos, é um esporte sério e divertidíssimo, lembra um pouco o futebol americano, mas ao invés de usar aquela bola que parece um mamão, usa-se o disquinho.
Em um certo momento da entrevista, o entrevistador questiona a conexão desse passado esportivo com a vida atual, de um jovem empresário, que coordena uma empresa com um bocado de funcionários.
Nunca encostei num taco de golfe e a última vez que eu peguei num frisbee foi pra jogar para o Jorge, meu cachorro, mas por um bom tempo o handball foi o centro da minha vida, então foi inevitável refletir sobre o ponto levantado pelo anfitrião. Eu poderia soltar algo do tipo "ah, o esporte me ensinou a ter mais foco, persistência, disciplina", eu poderia, e provavelmente seria uma verdade, mas hoje quero dividir outra reflexão. Acompanhem aqui comigo:
Eu acabei de desenhar uma quadra feia de handball em um texto sobre dinheiro? Sim, amigos, a gente vai chegar lá.
Vejam, os pontinhos azuis são os 6 atacantes, os pontinhos amarelos são os 6 defensores. O pontinho azul com o número 1 do lado é o ponta-esquerda e neste momento ele está com a bola. Ele vai tentar ocupar aquele espaço entre os dois pontinhos amarelos (vejam a setinha).
Os pontinhos amarelos vão se aproximar um do outro, numa tentativa de defesa. É bastante provável que os pontinhos amarelos consigam se fechar rapidamente, fazendo com que o pontinho azul número 1 passe a bola para o pontinho azul número 2, que é o meia-esquerda, que por sua vez vai atacar o espaço entre os respectivos pontinhos amarelos na sua frente, com muita velocidade.
Os pontinhos amarelos vão tentar se fechar, novamente, forçando com que a bola seja passada para o central, que é o pontinho azul com o número 3. Tudo isso acontece em poucos segundos. O central ataca e a bola vai seguindo em direção ao lado direito da quadra, até chegar no asterisco verde, ali pertinho do meia-direita e do ponta-direita. Talvez, neste ponto, se o ataque for hábil o suficiente, haverá espaço para que os atacantes consigam um bom arremesso.
Se esse espaço não surgir, não tem problema, a bola segue correndo, dessa vez na direção oposta, com cada atacante atacando o espaço vazio na sua frente, até que surja um espaço conveniente para o chute (no handball nós não chutamos a bola, pessoal, nós arremessamos, é só jeito de falar mesmo).
Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita... esse fluxo é chamado de engajamento. É comum utilizarmos como substantivo e como verbo: "reginaldo, não quebra o engajamento, segue a bola, segue a bola" ou "vai, engaja essa bola, pelo amor de deus".
Esse é um movimento padrão, ele é a base do jogo, todo time razoavelmente estruturado de handball se articula dessa forma. Existe, é claro, um motivo para que isso seja feito dessa forma: funciona muito bem.
Se vocês abrirem o youtube e buscarem por "handball olympics 2021" vocês vão encontrar alguns jogos dessas últimas Olimpíadas. Em todos os links que você clicar, vocês vão encontrar times engajando. É isso o que os times fazem na maior parte do tempo.
Eventualmente surge uma movimentação diferente. Um jogador que quebra o engajamento, um ponta-esquerda que se infiltra na defesa, um atacante que cruza com o outro, uma bola que atravessa a quadra, numa tentativa de tornar o processo mais complexo e difícil para a defesa. De novo, isso acontece eventualmente. Na maior parte do tempo, é o feijão com arroz.
Agora, pensem aqui comigo: se você fosse um técnico de um time de handball e precisasse escolher uma das duas abordagens a seguir:
treinar exaustivamente o engajamento, para torná-lo cada vez mais preciso e eficiente, já que durante 90% do tempo de jogo seus atletas estarão fazendo exatamente isso; ou
treinar uma jogada diferente, que surpreende o adversário, que embala a torcida, porém que necessariamente será realizada algumas poucas vezes.
Qual você escolheria?
Talvez seja tentador fazer um gol com um duplo twist carpado cruzado aéreo deluxe premium, pra dar aquela elevada na moral, mas a opção 1 (treinar o básico e fazê-lo de maneira impecável) é indiscutivelmente mais eficiente. É isso que você deveria fazer. O básico incrivelmente bem feito. Para além do clichê, essa é a maior lição que o esporte me deu.
As empresas, as iniciativas, as vidas financeiras, as carteiras de investimentos, elas se apoiam em princípios extremamente simples que devem ser realizados com precisão e consistência.
Nossos esforços e nosso tempo devem ser direcionados, primeiro, ao aprimoramento do básico, e só depois às demais frentes, que serão responsáveis por uma parcela pequena do resultado.
Lembro disso sempre que vejo os alunos autônomos se preocupando com pequenos detalhes que farão pouquíssima diferença na jornada (o detalhe do cantinho do logotipo) enquanto deixam de lado partes cruciais, sem as quais o negócio não para de pé (a validação do modelo, por exemplo), ou quando converso com a turma do Dinheiro Sem Medo e vejo um aluno estudando o detalhe do detalhe do detalhe do investimento que vai compor 2% da carteira, ao invés de se preocupar com o próprio orçamento. Não adianta ser o mago dos investimentos se não sobra dinheiro para investir.
Mãe, pai, amigos, Amuri de 16 anos, aqui está um texto sobre handball disfarçado de texto sobre dinheiro. E vice-versa.
Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.
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