Não tranco portas
Amigos, esse poderia ser o título de um texto motivacional, uma chamada metafórica com o objetivo de te lembrar que é uma boa ideia manter as portas abertas, as relações pacificadas, "vai que tudo dá errado e você precisa voltar, né, meu filho", nunca se sabe o dia de amanhã, enfim, aquela coisa toda... mas não é. É uma afirmação literal: eu esqueço de trancar portas. Esse é um traço de personalidade que me acompanha há mais de 20 anos.
Minha relação autônoma com chaves começou quando eu tinha 13. Eu morava em uma casa no Brás, em São Paulo, meus pais saíam para trabalhar cedinho, eu ia para escola com a chave no bolso, voltava para casa para almoçar e em seguida saía para treinar. Na maior parte das vezes, para o desespero da minha mãe, a porta ficava aberta. Perdi a conta da quantidade de variações de "filho, pelo amor de deus, a gente não mora na Suíça, não dá pra deixar a porta aberta" eu escutei. Não adiantava.
Certo dia eu voltei para casa e o computador, que certamente era o objeto que eu mais amava na vida, tinha desaparecido. "Você deixou a porta aberta, filho, entraram em casa e levaram o computador". Fiquei pálido, chorei como se não houvesse amanhã e, alguns segundos depois, minha mãe sentou do meu lado, com toda a paciência do universo, e explicou "eu escondi o computador, peço desculpas, mas eu preciso que você entenda que isso poderia ter acontecido de verdade, eu não sei mais o que fazer, você precisa lembrar de trancar a casa". Não funcionou, eu esqueci de trancar a casa de novo, na semana seguinte.
Eu e minha mãe contornamos esse transtorno de comportamento do jeito que deu, seguimos com a vida e neste momento me encontro casado, dividindo a casa com a Gabriela, minha companheira, que segue lidando com a minha incompetência. Após esgotar as tentativas digitais, estamos explorando métodos mais analógicos:
Na semana passada voltei do passei com o Jorginho, nosso cachorro, e vi os bilhetinhos na porta. A-HA! Sim! Farei agora, meu amor! Que coisa maravilhosa! Tranquei a porta com a satisfação de quem coloca a última peça em um quebra-cabeça e fui para a cama. A vitória.
Alguns dias de sucesso se passaram até que, ontem, eu esqueci de trancar a porta de novo. "Mas, meu deus, não é possível, eu deixei os bilhetes do lado da maçaneta, você lembra 3 milhões de coisa de trabalho, dos amigos, de tudo, mas não consegue lembrar de virar a chave, eu não entendo, eu juro que não entendo, como pode!?".
Olha, longe de mim querer me justificar, mas eu realmente posso explicar porque os bilhetes funcionaram por alguns dias e depois pararam de funcionar. Meu deslize tem embasamento científico, empírico e irrefutável.
Segundo Daniel Kahneman, psicólogo, um dos principais nomes das ciências comportamentais, ganhador do Nobel de economia em 2002 e principal ponto de apoio da minha defesa nessa difícil empreitada, nossa mente opera a partir de dois sistemas.
O primeiro (sistema 1) é conhecido como o "eu-quente". É impulsivo, automático, focado no curto prazo, na execução, no prático. Ele atua "sem esforço", não consome energia, é inconsciente, não moldável. Quando muito, com esforço, ressalvas e sorte, ele pode ser adestrado.
O segundo (sistema 2) é o "eu-frio". É racional, lento, reflexivo, ponderador, focado em longo prazo, um excelente tomador de decisões, avalia eventos de maneira extremamente consciente, é sensato. É extremamente maleável, educável. Utilizá-lo, porém, nos deixa exaustos, impacientes, sem energia.
Durante a maior parte do tempo, por uma questão de eficiência energética, o sistema 1 está no controle. Ele é responsável por nossa sobrevivência e pela continuidade da nossa raça. Não fosse esse automatismo, esse mecanismo rudimentar de tomada de decisões baseada em pouquíssimas variáveis, teríamos sido comidos por leões. Já vamos chegar no ponto dos bilhetes da minha esposa, sigam comigo aqui.
O sistema 2 é preguiçosamente ativado em momentos específicos (e, na maioria dos casos, de maneira não deliberada). É como se, por breves instantes, saíssemos do piloto automático (sistema 1) e fôssemos acometidos por um lapso de iluminação que nos permite colocar as variáveis na mesa e ponderar calmamente sobre determinada situação. Um dos principais fatores que desencadeiam a atuação do sistema 2, vejam só, é a alteração de cenários e contextos. A porta aqui de casa nunca teve bilhetes, aqueles quadradinhos coloridos nunca haviam entrado no meu campo de visão. Nos primeiros dias eles ganharam minha atenção, causaram certa perturbação, fizeram com que eu saísse do transe da vida cotidiana e me lembrasse de que eu precisava trancar a porta.
O ritual de olhar para os bilhetinhos e refletir sobre os próximos passos (sistema 2) se repetiu por alguns dias e minha mente, preciosa e zeladora, seguiu empenhada em buscar maneiras eficientes de gerenciar minha própria energia, minha disponibilidade cognitiva. A meta, como sempre, é gastar o mínimo possível, nunca se sabe quando precisarei de energia para tomar uma decisão muito importante ou para fugir de leões. Rapidamente os bilhetinhos se mesclaram com o cenário.
Prezando pela economia, já que eles estão sempre lá, já que eles não representam perigo, por que notá-los? Por que dar atenção? Por que simplesmente não ignorá-los? Os bilhetinhos, que antes eram um novidade, passaram a integrar a paisagem e perderam a capacidade de me colocar em estado de alerta.
As descobertas no campo das ciências comportamentais revolucionaram nosso entendimento acerca do processo decisório e isso gera um impacto gigante nas mais diferentes esferas, do processo de planejamento individual, micro, particular, até o desenho de programas assistenciais e políticas públicas.
Aprendemos, por exemplo, que precisamos desenhar sistemas que sigam operando com sucesso em contextos caóticos em que os atores estejam sendo demandados de todos os lados — a vida real. Na história da porta aqui de casa, o ator sou eu. Se estamos olhando para sua vida financeira, o ator é você.
Se sua rotina financeira depende do sistema 2 para funcionar de maneira satisfatória, a chance de surgirem problemas é imensa.
Por exemplo, se você deixa para poupar "quando sobra" ou se o processo de mandar dinheiro para a sua poupança depende de um estudo envolvendo 3 planilhas e 5 extratos confusos, a chance de que isso seja deixado para lá é muito grande. Se você automatiza a transferência do valor que você deseja poupar todos os meses, por exemplo, fazendo com que isso aconteça de maneira recorrente, independentemente do seu estado de espírito, a possibilidade de falha é muito pequena.
Se você entende planejamento financeiro como uma tarefa hercúlea, maçante, é completamente instintivo deixar para depois. De novo: toda energia deve ser poupada. Por outro lado, se você entende o planejamento como algo leve, fácil, conectado com o dia a dia, indissociável das nossas apostas de felicidade, é mais fácil trazê-lo para o agora e, com alguma sorte e esforço, fazer disso um hábito. Hábitos são gerenciados pelo sistema 1, estão totalmente incrustados no nosso fluxo mental e demandam pouquíssimo esforço — é por isso, aliás, que é tão difícil se livrar dos hábitos, mesmo daqueles que, de acordo com nosso julgamento, são nocivos. Quão demandante e cansativa é sua vida financeira hoje?
Isso posto, me dirijo não só a você, meritíssimo, mas também a minha mãe, à Gabriela, e aos amigos que integram o tribunal da internet, e finalizo minha defesa, ciente de que seria inviável instalarmos uma fechadura eletrônica no nosso apartamento alugado, porém com o coração leve e cheio de esperança de que, seja sob o controle ferveroso do sistema 1, seja sob a tutela morosa do sistema 2, cedo ou tarde venceremos essa batalha.
Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.
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